Amanhecer tem que ser algum tipo de milagre. Natimorto, o dia se esvai como um bicho que dura horas depois da metamorfose. Vive no porvir. Cada segundo é o seguinte. O presente é uma antecipação da morte. Mas sem consciência até eu, que sou mais bobo. Quero ver você saber. Saber que morrerá. Não faço rodeios, desculpe, não estou aqui para ser político. Meu velho, muito na boa mesmo, tem umas duas mil e quinhentas divindades “em atividade”, ênfase nas aspas, atualmente. Se contarmos aquelas que civilizações conquistadoras extinguiram, aquelas outras que jamais tiveram registro na história, aquelas tantas das quais, assim como você e eu, jamais se ouvirá falar, serão quantas? Você vem aqui e me fala, “se deus quiser, tudo vai dar certo no meu divórcio”? Como assim? Bilhões e bilhões de anos, somente neste planetinha de nada, no meio de um infinito que faz jus ao nome, e que se expande, são milhões de galáxias, cada um com seus muitos planetas e luas, e sabe-se lá mais o quê, que eu não sou da área. Não quero te ofender. Mas são seis e meia de uma manhã que sucede e precede tanto, mas tanto, que não há probleminha teu, divindade tua, ou qualquer outra porra que me faça levar essa merda que você falou a sério. Você é cristão, beleza, não podia me importar menos se eu tentasse, juro mesmo. Eu já tomei esses vinhos, esses Malbec tão bons nesse aeroporto aqui na Argentina, pensando num amor antigo, uma argentina que vivia em São Paulo, nessas notas fortes, como a personalidade que esse vinho tem. E para mim, meu irmão, do fundo do meu coração, já não tenho tempo mais para papinho. Já não posso mais com papo furado, entende? A vida é breve, depressa, desesperada, perigosa. Falar de “se deus quiser” é para mim o mesmo papinho de elevador que falar do tempo, do futebol, da inflação. Esse vinho, meu querido, é um lembrete de um amor que vivi. E nos segundos em que o vivi, fui feliz. Fui dramático. Fomos. Eu e ela. Eu a adorava. Eu a tinha com loucura, ela se entregava com abnegação, esvaziamento de ego. Escapávamos, eu e ela, da consciência da morte, dos quaisquer caralhos fossem os deuses em voga naquele momento histórico, como dois pagãos, e os seios dela ainda estão em minhas mãos, e me diga agora, pedi-lhe, como vou seguir, parafraseando a música que deixávamos de ouvir depois de alguns versos, para despertar depois, muitas músicas depois, se houvesse ainda no álbum, ou no silêncio. Silêncio de fato. Que é quando não é preciso falar, nem se pensa nisso, inexiste. Um suspiro, um gemido, um braço que bate no canto da cama, e aí sim, voltávamos um pouco a contemplar, com os lábios entreabertos e sem nenhuma possibilidade de se importar com a vaidade, uma realidade que sabíamos ser vaga, corriqueira, tema organizador das coisas da vida corrente, mais ou menos como esse “se deus quiser” aí que você invocou para desejar bom término ao infinitesimalmente particular fato da tua vida, que é o teu divórcio. Durou pouco esse caso meu, nunca mais a vi.
Não fique bravo. Ninguém mais nos ouve mesmo. Não há motivo para resguardar teus valores, tua moralidade. Você começou tudo isso dizendo que quando conheceu tua ex-mulher, sabia imediatamente que era a mulher da tua vida, não foi? Do quanto é lamentável, e, aparentemente, motivo de bebedeira, o fato de você ter se enganado, se entregado tanto, para depois ver a relação azedar e, incapaz de controlar o machismo, de exercer real empatia, ou de compreender as frustações, anseios ou receios que se passavam na cabeça da mulher idealizada, vê-la partir, rasgando-lhe a alma e etcétera e tal.
Vejo que você acordou agora. Está prestando atenção. Obrigado, Marcos. Perceba que ainda não estou bêbado o suficiente para esquecer o teu nome. O meu eu sei que você não sabe. Ainda bem. Você não tem o meu Whatsapp, Facebook, não sabe porra nenhuma sobre mim, a não ser que eu sou brasileiro, estou na casa dos trinta, sou bonito, alto, e não dou a mínima para trivialidades. Além do mais, seu voo sai em duas horas, o meu em uma. Jamais nos veremos novamente. Isso me favorece, pois quero te contar uma história. Tem a ver com esse papo de conhecer alguém e já saber o que vai rolar. Só que, nesse caso, eu não tinha nenhuma puta ideia, meu irmão. Quer ouvir? Tem certeza? Então aí vai.
Quando eu conheci a Danusa, meu caro, eu já sabia. Não sabia o que sabia, mas sabia. Era mais velha que eu por oito anos, e era linda, tão linda, peituda, bunda boa, tudo firme, altura ideal, eu sou um cara alto, ela era mediana, natural, e isso me atrai, era natural, uma mulher sem rodeios, os cabelos longos, castanhos, suaves, sobre uma cara, meu irmão… Uma cara esculpida! Olhos negros, sorridentes, quietos como um pescador a juntar seus anzóis, e eu, atolado na areia, perdia meus pés. O rosto delgado, ainda tão jovial, um sorriso largo que põe inveja a esse alvorecer aí, e um lábios finos, sob um nariz igualmente fino, perfeito como a flor que nos obriga a mudar de calçada e dar risada do grande amor, mentira, e um olhar para dentro da tua alma. Ela via tudo. Minhas fraquezas, meus medos, minhas pequenezes, meus galanteios ridículos, a fragilidade do meu porte de conquistador barato que com ela se esvanecia inutilmente. Te confidencio desde já que essa mulher não tinha uma puta ruga sequer, nenhum resquício de celulite, fora dançarina a vida toda, musicista, atriz, professora dessas coisas todas, e não há mulher de 20 que possa rivalizar, e, acredite, eu saberia dizer. Perdi-me.
Ora, que conto de fadas, não? Esqueci de dizer que ela começava na empresa onde eu trabalhava havia anos. Arrancou logo um cargo respeitável, com seu currículo invejável, vida no exterior, várias línguas, fala doce, sem percalços, sem pestanejar, conhecedora, admirável. Eu tremia, fingia que não tremia. Mencionei que tinha mulher, que tinha planos, que tinha sonhos, que era um homem sério, que estudava o que fazia, que tivera meus relances de sucesso acadêmico e profissional. De nada adiantava. Ela me reduzia a um menino com uma expressão doce, mas doce dela querer cuidar, enquanto eu me lembrava do quanto ela era superior a mim. Eu não ligava.
Foi café um dia, cerveja no outro, e esses olhares que levam um pouco de ti embora. E aquilo que ia embora era para ir mesmo, porque se ia era porque era papo furado, que nem o teu “se deus quiser”. E eu, que não, creio, rezo a deus por minha gente, é gente humilde, que vontade de chorar. Suburbano, apequenado, prisioneiro das circunstâncias. Um despeito de não ter como lutar. Não sobrou nada de mim para mim mesmo. Logo eu, quem diria. Que tinha fama, que arrastava olhares, levantava suspiros, levava no papo, conversador nato. Estava entregue. E de bom grado.
Já sem conseguir fazer qualquer outra coisa senão aceitar minha condição de menino afoito, inocente, tarado, me lancei nos braços dela na primeira oportunidade que tive. Minha nossa, que tesão! Meu pau era uma rocha, e havia várias quadras ainda até o seu prédio. Cheguei suado porque corri para chegar. Nem sei se corri, se andei rápido, sei lá. Quando ela abriu a porta, eu era só dor. E ela estava demais! Seu vestido, meu velho, aquela forma, aquele sorriso, aquela mulher toda, eu não era nada. Um súdito sem o conceito de vontade própria. Enviado ao delírio e ao prazer de servir àquela deusa.
Uma vez na sala, ela dançou só para mim. Nós bebemos, e o que era para ser uma conversa mútua, franca, acabou comigo agarrado ao seu peito, ouvindo-a. Tantas palavras que eu conhecia, e já não falo mais. Resumi-me a responder questões pontuais e a reagir ao que dizia. Seu ex-marido, um importante saxofonista norte-americano, não a amava, não a queria na cama, ela o deixara após mais de um ano sem sexo, e ainda ele abusava dela emocionalmente. Eu a agarrei mais forte. Derramei uma lágrima. Meu deus, como é possível que um homem fizesse isso com uma mulher como aquela. Ela se abriu mais. Ele batia nela! Meu coração quase parou.
Enquanto eu tentava aos beijos e aos mais honestamente apaixonados abraços consolá-la de todos os absurdos que ela sofrera, aprendi muito sobre música, dança, teatro, análise do discurso, feminismo, socialismo, como o stalinismo era diferente do trotskismo, como a mulher negra era diferente do homem branco, como a presidência da república era um circo de pulgas, como a mídia nos manipula, como a religião nos escraviza, como o amor romântico nos condiciona.
Concordava com tudo. Das poucas coisas que falei, estava o fato de que jamais havia tido pai, nem padrasto, nem chefe homem típico, nem nenhuma referência de como ser homem na sociedade. Eu só consigo respeitar as mulheres. É freudiano. Aí foi ela que me abraçou forte. Eu não tinha voz de homem, então pedi com voz de criança mesmo para que ela me deixasse beijá-la. Ela deixou. O corpo todo. Inteiro. Por horas. Até quando eu conseguisse sem que ela me pedisse para parar. Eu a adorei. Adorar: nunca um verbo intransitivo foi tão transitivo. Ela gozou, e eu suguei seu gozo, o cheiro de suas virilhas, de seu ânus, das axilas, dos cabelos, de tudo que possa emitir cheiro.
Quando eu entrei nela, acho que nunca tinha entrado em ninguém. Foi como perder a virgindade de novo. Fiz tudo agarrado a ela. Como um animal. Um cachorro. Um bicho possuído. Ela me pegou para ela. Adotou-me em seu seio, em suas entranhas. Acho que há muitas formas de amar. Tenho certeza que essa foi uma delas.
Meu velho, você não está nem piscando. Que bom! Espero que você tenha tido na sua vida a experiência de ser tido assim. De uma mulher te ter. Puramente. Dar-se, esquecer-se, um desejo de nem se notar. É de uma humildade transformadora, sabe? Que danado fui eu.
Dormi em seus braços. Apaguei em seus braços. Morri. Morri, meu caro. Você está diante de um homem que está vivendo pela segunda vez!
Finalmente, horas depois, acordei, ela dormia. Fui ao banheiro. Levei o telefone porque, já sabe, né? Eu tinha mulher… Mas nem chequei as mensagens. Fui direto ao Google e pesquisei o nome do ex-marido dela. Era famoso mesmo. E tinha morrido horrivelmente! Encontrei notícias de que a principal suspeita, sua esposa Diana, havia cometido o crime com requintes de crueldade. Arrancara sua língua e a pusera no lugar do pênis, como se fosse um enorme clitóris. Mais que isso: ela sumiu.
Busquei outros casos. Minha nossa, quantos homens! Ao menos cinco tiveram o mesmo fim nos últimos dois anos. Sem pênis, com um enorme clitóris. Eu havia passado as últimas horas da minha vida com uma assassina em série! E como sair desse banheiro agora?
Saí.
Corri, pelado mesmo, pela sala, pelo corredor, não falei nada para ninguém, não gritei, não pedi socorro, só corri, meus pés sangravam, e, sem poder mais, me joguei no chão, em frente a um bar, as pessoas me olhando, ninguém me ajudava. Gritei por socorro!
Acho que passou uma hora, por aí, e eu estava na esquina do prédio dela. A polícia o invadia. E logo saía. Ela sumira. Eu respirei fundo. O alívio pela vida rivalizava com uma dor profunda. Dor de criança que honestamente se desespera por se ver só em algum lugar desconhecido. Eu a amei como minha mãe. Trepei nela como se descobrisse ali o mundo. Tão experiente, eu era, achava. Por que me poupou? Será que porque sentiu o meu amor mais íntimo, mais moleque, mais bebê, mais homem entregue?
Me ofereceram tudo. Assistência médica, psicológica, financeira, afastamento do serviço com horas pagas, tudo em troca dos detalhes mais sórdidos, mais íntimos, que não lhes neguei. Era uma assassina, afinal! Há que prendê-la!
Mas não a encontraram até agora.
Ela está por aí. Solta.
Acho que não matou mais ninguém. Pelo menos não saiu nada em lugar nenhum.
Os caras que ela matou… Porra! Tão parecidos comigo, de alguma maneira. Brancos, altos, bonitos, com fama de mulherengos… Por que eu vivi?
Faz só um mês isso….
Sabe, Marcos, esses minutos que nós passamos juntos aqui, eles jamais voltarão. Nenhum minuto jamais voltará. Tudo que você fez em todos os minutos anteriores a esse está ligado a bilhões de anos antecessores e influenciará, ainda que como um grão de areia, os próximos bilhões de anos.
Faça um favor a si mesmo: liberte-se. Entenda o que lhe é imposto pelo mundo e, se não for absolutamente justo, jogue no lixo. E você será um homem melhor, eu prometo.
Vou nessa!
Pegue esse dinheiro aqui. Tem o suficiente para você tomar mais uma antes do teu voo. Bom retorno ao Rio. Eu tenho que voltar a São Paulo. Abração. Falou!
Eu teria largado tudo, meu deus. Caralho, eu teria largado tudo por ela. Tudo. Tudo. Tudo.
Quando eu chegar em casa, vou tomar uma cerveja e escutar Chico Buarque. Mas, infelizmente, ele não fez nenhuma canção sobre isto.