Retrato de um boteco na Vila Mariana

Uma mãe e uma criança comem açaí.

Um senhor com cara de filósofo e uma mulher idosa, lado a lado, falam com um homem meio calvo com camisa de escritório.

Torcedores vibram com o segundo gol.

Rapazes de boné fumam na calçada e falam sobre um outro que não está lá.

Duas mulheres de meia idade tomam cerveja e mastigam amendoim.

Um casal de namorados não desgruda o olhar um do outro.

O garçom boceja, olha para uma mesa e sorri. Um joia, mais um conhaque e outra cerveja.

Os estudantes passam rindo. As estudantes que passam sozinhas, as que são bonitas, evitam olhares curiosos.

Uma moça solitária parece uma amante cujo amor optou pela esposa, afinal.

Ontem, um menino foi assassinado depois de ignorar os avisos dos seguranças de uma franquia de fast food e apelar à alma de um último cliente pela bondade de um real.

Na rua, os ônibus piam, as motos vociferam, o farol verde acelera tudo, e o homem só, bonito, mira de supetão. É cutucado por uma senhora com um bebê no colo que pede esmolas.

Os torcedores comemoram o terceiro gol. Um grupo de estudantes moças para por uma cerveja e comenta sobre ele. Juntas, percebem-no. Sozinhas, fogem. Ele não se interessa.

Do outro lado da rua, adolescentes pobres são perfilados e revistados pela polícia.

Uma parada de tatuagens, juventude e senhoria, camisas gola polo e bonés. A garçonete parece ter se cansado das brincadeiras do garçom.

A banca fecha, cobre a notícia do assassinato. O vendedor de yakissoba desmonta a barraquinha. Alguém pede filet mignon, outro, a conta. Aparelhos nos dentes de uns, óculos na cara de outros. O sinal está vermelho. É um alívio.

Torcedores felizes, garrafas vazias na calçada, reclamações e gargalhadas. Alguém arrasta uma mochila de rodinhas entre as mesas. Falam mal do chefe. Alguém se cansou e vai pedir demissão.

A linda menina asiática passa quase intimando o homem belo, mas passa quase correndo.

O casal de namorados ainda não desgruda o olhar um do outro. A porção é um mero adereço. Como um pássaro que apruma o ninho.

Outra moça apreensiva se acalma com a chegada de um rapaz barbudo. Finalmente!

Um professor qualquer se preocupa com a umidade da mesa sobre o papel rascunho deste texto. A mulher o aguarda em casa. Tenta se ocupar para não se preocupar.

Um outro casal está obviamente em seu primeiro encontro. Conversam frivolidades.

Mas ontem, um menino foi assassinado depois de ignorar os avisos dos seguranças de uma franquia de fast food e apelar à alma de um último cliente pela bondade de um real.

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Quebra-cabeças

Não há muitos implícitos para a vida. Não significa muita coisa à priori. Viver é ganhar um quebra-cabeças maravilhoso logo na infância. Mas não sabemos que imagem estamos montando. Não sabemos quantas peças há. Mas alguma imagem tem que sair, temos que forçá-la a sair. É isso ou suicídio.

A Marcela nunca foi uma criança típica. Sua família tinha problemas demais, apesar da vida pacata do interior. Não gostava muito de atividades demoradas para distrair. Não gostava de televisão. Ao cair da noite, na sua casa e em todas as outras da vizinhança, o Jornal Nacional e as novelas. Era isso ou a igreja. Ela era muito sozinha. Mas não se sentia triste. Era muito curiosa. A descoberta a entusiasmava.

Tinha o Seu Domingos, um vizinho muito idoso, mas muito ativo, que passou a vida toda trabalhando para fazendeiros importantes da região. Ela gostava de histórias, e o Seu Domingos tinha muitas. Era fascinante escutar sobre suas grandes viagens no lombo do cavalo, levando a boiada, conhecendo jagunços, saindo pelo mundão afora. Mas o Seu Domingos era um homem triste. E no final de cada causo soltava sempre um longo suspiro sentido, e ressentia a amargura do presente.

Ela achou que o Seu Domingos estava enlouquecendo quando disse que até a lua tinha mudado. Estava diferente. Tem muito mais buracos agora. Ele passou a dizer isso sempre. Ela achava graça porque, apesar da infância, sabia que era impossível que a lua tivesse mudado nas últimas décadas. Será que ele queria dizer outra coisa? Foi o seu primeiro amigo…

Já uma jovem adulta, o quebra-cabeças estava lindo. A faculdade, o namorado, a cidade nova, uma vida própria. Tinha muito propósito ali. E isso guiava as pecinhas. Iam desenhando a carreira futura e toda a vida que teria. Mas depois de formada, assalariada, noiva, o apartamento bonito, foi como se um vendaval espalhasse tudo pelo chão. Ela tinha que começar de novo.

Mandou-se pelo mundo. O período mais feliz de sua vida, sem dúvidas. Mochilar sem destino certo era o mais próximo de um sonho. O porvir era bem-vindo porque o presente era maior. Muito maior. Na andança, a vida ardia. Mas o tempo urgia. E o dinheiro encurtava. E seu pai morria. Fim de viagem. As peças estavam todas lá, na mesa da sala de jantar, esperando por ela. Depois do velório, uma última ressaca antes de pôr as mãos na massa da vida mais uma vez.

Trabalho, namorado, apartamento, tudo de novo. Ela começou pela peça do canto. E essas três coisas eram as primeiras que tinham de encaixar. O próximo passo era o casamento e o bebê. A construção constante de um acervo de indivíduos ao seu redor. Sociedade, amigas, viagens, fotos no Instagram. Não durou muito. Ela foi preenchendo o vazio como pôde, se agarrando nos pequenos prazeres da vida para levar adiante um projeto que todo mundo ao seu redor parecia desenrolar sem tanto peso. Para ela, pesava.

O aborto foi complicado. Não foi premeditado, mas também não foi tão dilacerante quanto as pessoas que a consolavam acreditam ser. Ela tinha sim se acostumado com a ideia de ser mãe. E sim, chorou muito. Nunca soube o sexo, mas sonhava com uma menina. Uma menininha para dividir com ela os segredos da vida embaixo das pedras e atrás das nuvens.

Faz tempo que a Marcela não tem mais vontade de jogar. Até da tristeza ela se cansou. Divorciou-se e depois conheceu o Antônio, o melhor namorado de sua vida. Ele é quieto. Não impõe nada. Uma boa companhia. Mas mesmo assim, não sabe o que fazer com as peças que sobraram.

Pílulas e corte dos pulsos. Foram assim as duas primeiras tentativas. O Antônio a salvou nas duas vezes. Ela sabe que estava chamando atenção. Só não sabe de quem. Da próxima vez, é só estar realmente sozinha e pronto. É isso.

Escreveu uma bela carta para a mãe, outra para o Antônio. Ele não chegaria em casa antes das onze da noite, depois de sua última aula na faculdade.

Ela cortou a rede de proteção da janela. Era o sexto andar. O gato lambeu seu pé, ela derramou uma lágrima. Terminou o vinho e se sentou no parapeito. E agora?

Se for para fazer isso, então há que se ter muita certeza. Ela nunca teve certeza de nada. E disso também não.

Antônio a encontrou adormecida na sala, a janela escancarada. O gato em seu colo correu e a despertou.

_Antônio, não sei se vou para o Camboja, se dedico a minha vida a alguma causa humanitária, ou se tenho uma filha com você. O quebra-cabeças está se montando sozinho, gostaria eu mesma de colocar algumas peças.

_Por que não logo os três?

_Pode ser. Mas devo mudar de ideia.

_Tudo bem.

_A lua tem mais buracos agora, Antônio. Quero ver se amanhã terá ainda mais.

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O Chico Buarque não me preparou para isto

Amanhecer tem que ser algum tipo de milagre. Natimorto, o dia se esvai como um bicho que dura horas depois da metamorfose. Vive no porvir. Cada segundo é o seguinte. O presente é uma antecipação da morte. Mas sem consciência até eu, que sou mais bobo. Quero ver você saber. Saber que morrerá. Não faço rodeios, desculpe, não estou aqui para ser político. Meu velho, muito na boa mesmo, tem umas duas mil e quinhentas divindades “em atividade”, ênfase nas aspas, atualmente. Se contarmos aquelas que civilizações conquistadoras extinguiram, aquelas outras que jamais tiveram registro na história, aquelas tantas das quais, assim como você e eu, jamais se ouvirá falar, serão quantas? Você vem aqui e me fala, “se deus quiser, tudo vai dar certo no meu divórcio”? Como assim? Bilhões e bilhões de anos, somente neste planetinha de nada, no meio de um infinito que faz jus ao nome, e que se expande, são milhões de galáxias, cada um com seus muitos planetas e luas, e sabe-se lá mais o quê, que eu não sou da área. Não quero te ofender. Mas são seis e meia de uma manhã que sucede e precede tanto, mas tanto, que não há probleminha teu, divindade tua, ou qualquer outra porra que me faça levar essa merda que você falou a sério. Você é cristão, beleza, não podia me importar menos se eu tentasse, juro mesmo. Eu já tomei esses vinhos, esses Malbec tão bons nesse aeroporto aqui na Argentina, pensando num amor antigo, uma argentina que vivia em São Paulo, nessas notas fortes, como a personalidade que esse vinho tem. E para mim, meu irmão, do fundo do meu coração, já não tenho tempo mais para papinho. Já não posso mais com papo furado, entende? A vida é breve, depressa, desesperada, perigosa. Falar de “se deus quiser” é para mim o mesmo papinho de elevador que falar do tempo, do futebol, da inflação. Esse vinho, meu querido, é um lembrete de um amor que vivi. E nos segundos em que o vivi, fui feliz. Fui dramático. Fomos. Eu e ela. Eu a adorava. Eu a tinha com loucura, ela se entregava com abnegação, esvaziamento de ego. Escapávamos, eu e ela, da consciência da morte, dos quaisquer caralhos fossem os deuses em voga naquele momento histórico, como dois pagãos, e os seios dela ainda estão em minhas mãos, e me diga agora, pedi-lhe, como vou seguir, parafraseando a música que deixávamos de ouvir depois de alguns versos, para despertar depois, muitas músicas depois, se houvesse ainda no álbum, ou no silêncio. Silêncio de fato. Que é quando não é preciso falar, nem se pensa nisso, inexiste. Um suspiro, um gemido, um braço que bate no canto da cama, e aí sim, voltávamos um pouco a contemplar, com os lábios entreabertos e sem nenhuma possibilidade de se importar com a vaidade, uma realidade que sabíamos ser vaga, corriqueira, tema organizador das coisas da vida corrente, mais ou menos como esse “se deus quiser” aí que você invocou para desejar bom término ao infinitesimalmente particular fato da tua vida, que é o teu divórcio. Durou pouco esse caso meu, nunca mais a vi.

Não fique bravo. Ninguém mais nos ouve mesmo. Não há motivo para resguardar teus valores, tua moralidade. Você começou tudo isso dizendo que quando conheceu tua ex-mulher, sabia imediatamente que era a mulher da tua vida, não foi? Do quanto é lamentável, e, aparentemente, motivo de bebedeira, o fato de você ter se enganado, se entregado tanto, para depois ver a relação azedar e, incapaz de controlar o machismo, de exercer real empatia, ou de compreender as frustações, anseios ou receios que se passavam na cabeça da mulher idealizada, vê-la partir, rasgando-lhe a alma e etcétera e tal.

Vejo que você acordou agora. Está prestando atenção. Obrigado, Marcos. Perceba que ainda não estou bêbado o suficiente para esquecer o teu nome. O meu eu sei que você não sabe. Ainda bem. Você não tem o meu Whatsapp, Facebook, não sabe porra nenhuma sobre mim, a não ser que eu sou brasileiro, estou na casa dos trinta, sou bonito, alto, e não dou a mínima para trivialidades. Além do mais, seu voo sai em duas horas, o meu em uma. Jamais nos veremos novamente. Isso me favorece, pois quero te contar uma história. Tem a ver com esse papo de conhecer alguém e já saber o que vai rolar. Só que, nesse caso, eu não tinha nenhuma puta ideia, meu irmão. Quer ouvir? Tem certeza? Então aí vai.

Quando eu conheci a Danusa, meu caro, eu já sabia. Não sabia o que sabia, mas sabia. Era mais velha que eu por oito anos, e era linda, tão linda, peituda, bunda boa, tudo firme, altura ideal, eu sou um cara alto, ela era mediana, natural, e isso me atrai, era natural, uma mulher sem rodeios, os cabelos longos, castanhos, suaves, sobre uma cara, meu irmão… Uma cara esculpida! Olhos negros, sorridentes, quietos como um pescador a juntar seus anzóis, e eu, atolado na areia, perdia meus pés. O rosto delgado, ainda tão jovial, um sorriso largo que põe inveja a esse alvorecer aí, e um lábios finos, sob um nariz igualmente fino, perfeito como a flor que nos obriga a mudar de calçada e dar risada do grande amor, mentira, e um olhar para dentro da tua alma. Ela via tudo. Minhas fraquezas, meus medos, minhas pequenezes, meus galanteios ridículos, a fragilidade do meu porte de conquistador barato que com ela se esvanecia inutilmente. Te confidencio desde já que essa mulher não tinha uma puta ruga sequer, nenhum resquício de celulite, fora dançarina a vida toda, musicista, atriz, professora dessas coisas todas, e não há mulher de 20 que possa rivalizar, e, acredite, eu saberia dizer. Perdi-me.

Ora, que conto de fadas, não? Esqueci de dizer que ela começava na empresa onde eu trabalhava havia anos. Arrancou logo um cargo respeitável, com seu currículo invejável, vida no exterior, várias línguas, fala doce, sem percalços, sem pestanejar, conhecedora, admirável. Eu tremia, fingia que não tremia. Mencionei que tinha mulher, que tinha planos, que tinha sonhos, que era um homem sério, que estudava o que fazia, que tivera meus relances de sucesso acadêmico e profissional. De nada adiantava. Ela me reduzia a um menino com uma expressão doce, mas doce dela querer cuidar, enquanto eu me lembrava do quanto ela era superior a mim. Eu não ligava.

Foi café um dia, cerveja no outro, e esses olhares que levam um pouco de ti embora. E aquilo que ia embora era para ir mesmo, porque se ia era porque era papo furado, que nem o teu “se deus quiser”. E eu, que não, creio, rezo a deus por minha gente, é gente humilde, que vontade de chorar. Suburbano, apequenado, prisioneiro das circunstâncias. Um despeito de não ter como lutar. Não sobrou nada de mim para mim mesmo. Logo eu, quem diria. Que tinha fama, que arrastava olhares, levantava suspiros, levava no papo, conversador nato. Estava entregue. E de bom grado.

Já sem conseguir fazer qualquer outra coisa senão aceitar minha condição de menino afoito, inocente, tarado, me lancei nos braços dela na primeira oportunidade que tive. Minha nossa, que tesão! Meu pau era uma rocha, e havia várias quadras ainda até o seu prédio. Cheguei suado porque corri para chegar. Nem sei se corri, se andei rápido, sei lá. Quando ela abriu a porta, eu era só dor. E ela estava demais! Seu vestido, meu velho, aquela forma, aquele sorriso, aquela mulher toda, eu não era nada. Um súdito sem o conceito de vontade própria. Enviado ao delírio e ao prazer de servir àquela deusa.

Uma vez na sala, ela dançou só para mim. Nós bebemos, e o que era para ser uma conversa mútua, franca, acabou comigo agarrado ao seu peito, ouvindo-a. Tantas palavras que eu conhecia, e já não falo mais. Resumi-me a responder questões pontuais e a reagir ao que dizia. Seu ex-marido, um importante saxofonista norte-americano, não a amava, não a queria na cama, ela o deixara após mais de um ano sem sexo, e ainda ele abusava dela emocionalmente. Eu a agarrei mais forte. Derramei uma lágrima. Meu deus, como é possível que um homem fizesse isso com uma mulher como aquela. Ela se abriu mais. Ele batia nela! Meu coração quase parou.

Enquanto eu tentava aos beijos e aos mais honestamente apaixonados abraços consolá-la de todos os absurdos que ela sofrera, aprendi muito sobre música, dança, teatro, análise do discurso, feminismo, socialismo, como o stalinismo era diferente do trotskismo, como a mulher negra era diferente do homem branco, como a presidência da república era um circo de pulgas, como a mídia nos manipula, como a religião nos escraviza, como o amor romântico nos condiciona.

Concordava com tudo. Das poucas coisas que falei, estava o fato de que jamais havia tido pai, nem padrasto, nem chefe homem típico, nem nenhuma referência de como ser homem na sociedade. Eu só consigo respeitar as mulheres. É freudiano. Aí foi ela que me abraçou forte. Eu não tinha voz de homem, então pedi com voz de criança mesmo para que ela me deixasse beijá-la. Ela deixou. O corpo todo. Inteiro. Por horas. Até quando eu conseguisse sem que ela me pedisse para parar. Eu a adorei. Adorar: nunca um verbo intransitivo foi tão transitivo. Ela gozou, e eu suguei seu gozo, o cheiro de suas virilhas, de seu ânus, das axilas, dos cabelos, de tudo que possa emitir cheiro.

Quando eu entrei nela, acho que nunca tinha entrado em ninguém. Foi como perder a virgindade de novo. Fiz tudo agarrado a ela. Como um animal. Um cachorro. Um bicho possuído. Ela me pegou para ela. Adotou-me em seu seio, em suas entranhas. Acho que há muitas formas de amar. Tenho certeza que essa foi uma delas.

Meu velho, você não está nem piscando. Que bom! Espero que você tenha tido na sua vida a experiência de ser tido assim. De uma mulher te ter. Puramente. Dar-se, esquecer-se, um desejo de nem se notar. É de uma humildade transformadora, sabe? Que danado fui eu.

Dormi em seus braços. Apaguei em seus braços. Morri. Morri, meu caro. Você está diante de um homem que está vivendo pela segunda vez!

Finalmente, horas depois, acordei, ela dormia. Fui ao banheiro. Levei o telefone porque, já sabe, né? Eu tinha mulher…  Mas nem chequei as mensagens. Fui direto ao Google e pesquisei o nome do ex-marido dela. Era famoso mesmo. E tinha morrido horrivelmente! Encontrei notícias de que a principal suspeita, sua esposa Diana, havia cometido o crime com requintes de crueldade. Arrancara sua língua e a pusera no lugar do pênis, como se fosse um enorme clitóris. Mais que isso: ela sumiu.

Busquei outros casos. Minha nossa, quantos homens! Ao menos cinco tiveram o mesmo fim nos últimos dois anos. Sem pênis, com um enorme clitóris. Eu havia passado as últimas horas da minha vida com uma assassina em série! E como sair desse banheiro agora?

Saí.

Corri, pelado mesmo, pela sala, pelo corredor, não falei nada para ninguém, não gritei, não pedi socorro, só corri, meus pés sangravam, e, sem poder mais, me joguei no chão, em frente a um bar, as pessoas me olhando, ninguém me ajudava. Gritei por socorro!

Acho que passou uma hora, por aí, e eu estava na esquina do prédio dela. A polícia o invadia. E logo saía. Ela sumira. Eu respirei fundo. O alívio pela vida rivalizava com uma dor profunda. Dor de criança que honestamente se desespera por se ver só em algum lugar desconhecido. Eu a amei como minha mãe. Trepei nela como se descobrisse ali o mundo. Tão experiente, eu era, achava. Por que me poupou? Será que porque sentiu o meu amor mais íntimo, mais moleque, mais bebê, mais homem entregue?

Me ofereceram tudo. Assistência médica, psicológica, financeira, afastamento do serviço com horas pagas, tudo em troca dos detalhes mais sórdidos, mais íntimos, que não lhes neguei. Era uma assassina, afinal! Há que prendê-la!

Mas não a encontraram até agora.

Ela está por aí. Solta.

Acho que não matou mais ninguém. Pelo menos não saiu nada em lugar nenhum.

Os caras que ela matou… Porra! Tão parecidos comigo, de alguma maneira. Brancos, altos, bonitos, com fama de mulherengos… Por que eu vivi?

Faz só um mês isso….

Sabe, Marcos, esses minutos que nós passamos juntos aqui, eles jamais voltarão. Nenhum minuto jamais voltará. Tudo que você fez em todos os minutos anteriores a esse está ligado a bilhões de anos antecessores e influenciará, ainda que como um grão de areia, os próximos bilhões de anos.

Faça um favor a si mesmo: liberte-se. Entenda o que lhe é imposto pelo mundo e, se não for absolutamente justo, jogue no lixo. E você será um homem melhor, eu prometo.

Vou nessa!

Pegue esse dinheiro aqui. Tem o suficiente para você tomar mais uma antes do teu voo. Bom retorno ao Rio. Eu tenho que voltar a São Paulo. Abração. Falou!

Eu teria largado tudo, meu deus. Caralho, eu teria largado tudo por ela. Tudo. Tudo. Tudo.

Quando eu chegar em casa, vou tomar uma cerveja e escutar Chico Buarque. Mas, infelizmente, ele não fez nenhuma canção sobre isto.

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Uma nova freguesia

Mas que chateação, eu dizia com a expressão na minha cara, pois nunca fui bom em esconder meus sentimentos. Era um domingo, eu estava meio de ressaca, e ainda por cima eu conhecia bem a vítima. Ir ao seu amplo apartamento era sinônimo de felicidade, de poder fumar e beber, e ouvir um samba bom, uma boa bossa. João Gilberto, Chico Buarque, Vinicius, Tom, Caetano, porque a gente gostava mais de sambas que fossem singelos, falassem de nada ou de coisas importantes, mas tinha que ser bonito. A gente não gostava de samba muito rasgado, ou feito para dançar.

Em minha última visita, éramos só nós dois. Era só a segunda vez que ele me convidava a ir ao seu apartamento sem que fosse uma festinha. Achei estranho no começo, sei lá, o Júlio era desses caras que não são muito apegados a rótulos sexuais, nem comportamentais. Eu até achava isso bacana, mas com certeza nunca foi a minha praia.

A Lucila, minha mulher, vinha achando estranho que eu ficasse tanto tempo em casa. Quando me conheceu, eu era um cara da rua. Um jovem investigador de polícia e um tipo notívago, tinha tudo que era tipo de hábito.  Ia a concertos na Sala São Paulo ou no Municipal, bebia nuns botecos lado B – eu vinha numa fase forte de Santa Cecília – e me mudava de apartamento conforme a freguesia, os amigos, e foi assim que fui para os Campos Elíseos, atrás do metrô Marechal, e depois para as Perdizes, onde passei a frequentar os botecos da Barra Funda. Foi um tempo de certa reclusão, mas muito necessário. Eu já estava me sentindo um pouco mais velho, já chegava aos trinta e aí Lucila apareceu, de shortinho, e ali dentro tinha bundinha, nem magra nem gorda, quase dez anos mais jovem, e muito agradável. Desenrolaram-se alguns anos e daqui a mais alguns já chego aos quarenta.

De certa forma, ir ao apartamento do Júlio era como ir a um plano superior. Uma chance de ver de perto um mundo encantador que me seduzia, mas que também me humilhava. Acendia uma chama do passado de um cara curioso, em plena forma, que morava na Angélica, ia à Augusta, aos vinte e poucos. Eu tinha acabado de sair da faculdade de Direito, me sentia um intelectual, aprendi francês e ia ver filme francês para comentar as nuances da linguagem que não foram capturadas pelas legendas. Tinha amigos, mas pensando bem foi nesse tempo que eu comecei a me distanciar de amizades duradouras. E olha a minha vida agora…

Eu tenho uma mulher, um cachorro, que a Lucila disse que ficaria pequeno e agora parece um pônei, dívidas a longo prazo, uma carreira como investigador de polícia, e agora como perito criminal, que deixou de ser divertida e só deixou o stress e a angústia… Digamos apenas que faz muito tempo que eu não faço hora extra. Reaprendi a me desligar completamente e voltar a ficar mais na rua. Comecei bebendo, mas depois nem precisava disso, outro dia dei por mim tomando um latte no Starbucks, por volta das dez, lendo um livro de crimes.

Uma noite, num boteco da Barra funda, apartei uma briga entre dois caras, e tive que dar umas porradas em um deles, mas bem de leve que era em público. Comportei-me dignamente e até sermão no rapaz eu dei. Ele tinha acusado o outro cara de ter piscado para ele e feito um comentário em que constava a palavra gato. O outro cara, que ria muito, era o Júlio. Ele era hilário. E tinha um tipo de séquito de seguidores interessantíssimos, uns sombrios, outros muito loucos, todos muito cultos. Fazia anos que eu não me divertia tanto. E o apartamento do cara acabou virando um lugar aonde ir à noite, sempre acolhedor.

Agora era cena de perícia policial. Eu queria fumar. Queria tomar uma cerveja. Mas tinha que trabalhar e logo ali! A sala estava uma zona, o que não era muito diferente do habitual. Ele tinha cheirado pó, bebido uísque e também vi a garrafa aberta de uma cerveja belga que eu dei para ele. Acho que ele não gostou muito, disse para mim mesmo. Ainda sobrava a metade. Se eu fosse me matar, seguramente não teria deixado uma cerveja como essa pela metade. Acabei despejando a cerveja pelo ralo. Fui em direção à Janela por onde ele caiu.  Porra, o corpo dele ficou um tempão lá embaixo… Eu cheguei bem tarde e ainda vi o rabecão.

O laudo médico apontou uma quantidade tão grande de entorpecentes e álcool em seu corpo que se não se tratasse do Júlio poderiam dizer que era impossível a pessoa ter se matado. O porteiro do prédio não estava se sentindo bem desde o fim de semana anterior e ninguém estava em seu lugar. Não se podia saber se alguém o visitou. Não há sinais de havia uma segunda pessoa com ele, como dois copos iguais, com o mesmo líquido dentro, pratos, talheres. Mas o laudo médico mostrava que ele havia feito sexo. Tinha penetrado alguém pelo ânus. Ou seja, as chances de homicídio não poderiam ser descartadas.

Passei a assistir vídeos de quedas fatais em um monitor na delegacia. Chamei um dos investigadores mais jovens, o Rafael, e lhe mostrei um vídeo em que o acusado cai em pé, de frente para o prédio, e atinge a cabeça e as costas na calçada violentamente. Você está vendo como ele caiu? _ perguntei. E prossegui: _ alguém que se mata atingiria o solo de que maneira? _ De costas! _ concluiu. _ E como caiu a nossa vítima?

Júlio caiu de costas para o prédio. E ao que tudo indica, de bruços. Isso significa que ele teria de estar posicionado de forma a cair do apartamento, e não ser empurrado. Não havia como saber quem tinha ido visitá-lo, mas eu mesmo me encarreguei de ligar para os contatos em seu telefone e redes sociais, principalmente seus contatos recentes. Ninguém sabia de nada. Não haveria reviravolta. Era suicídio.

Fiz questão de ir ao enterro. Ali estavam alguns dos amigos do Júlio que eu conheci. Dois deles, a Renata, doidinha, e o Flávio, que é baterista numa banda de punk, vieram falar comigo. A Renata estava com uma cara péssima e me fitava como quem espera sua vez de dizer algo duro. Flávio começou: _Que merda, hein? Você está sabendo de alguma coisa, está fazendo parte das investigações? _Não sou esse tipo de investigador, Flávio. Mas ao que tudo indica, ele realmente… _eu não ia terminar mesmo, mas mesmo assim fui interrompido por uma Renata histérica: _eu conheço o Júlio desde a adolescência, a gente estudou junto no colegial! Ele não se mataria! E muito menos sem deixar um bilhete, sem dizer qualquer coisa. Isso não faz sentido nenhum, ele tinha um monte de projetos, um monte de planos… A moça dizia essas coisas na minha cara como se me culpasse pela morte do Júlio. Foi triste. Acabou amparada pelo Flávio e um parente do morto. E eu fui embora.

Na última vez que eu fui no apartamento do Júlio, levei umas drogas, que eu consigo fácil. Tomamos uma bala, como é chamado o êxtase, cheiramos pó e bebemos muito. Eu insisti para usarmos o mesmo copo, fumarmos o mesmo cigarro, cheirar com o mesma nota. Ele entendeu a mensagem. Rápido demais, eu diria. Ficou chapado muito rápido e veio para me beijar, nós nem terminamos a cerveja belga que eu levei. Eu não estava muito animado, mas ele estava muito, de pau duro e para fora da calça, tentou me forçar a chupar, mas aí já era demais. Eu peguei no pau dele e comecei uma punheta. Ele estava curtindo, mas eu sugeri dar mais tiro na coca. Ele aceitou. Na carreira dele eu coloquei um pouquinho escopolamina, mas só um pouquinho mesmo para ele não morrer, e ele estava inteiramente sobre o meu controle. Por curiosidade, eu o ordenei que me penetrasse. Mas não gostei. Fiquei logo irritado e mandei ele se sentar no parapeito da janela. E o empurrei.

Essa foi a quarta vez que eu fiz isso. Não havia dois copos, nem dois canudos e ele caiu de bruços, como testemunhará o Rafael no fórum. O porteiro não se sentia bem desde a minha visita anterior. Vou dizer para a Lucila que semana que vem nos mudaremos para o Itaim. É preciso ir em busca de uma nova freguesia. A Lucila está grávida, é a desculpa ideal.

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Calor

Mesmo na sombra, José Antônio se sentia mal pelo calor. Sentado na antiga cadeira de jardim branca e de ferro pesado que era de seus avós, já não fazia muito esforço para erguer o olhar à frente, para aquelas muitas plantas de flores que ele já nem se lembrava o nome e que já morreram ou estavam secando. Se olhasse para os lados veria muitas e enormes cascas azuis abandonando aos poucos as paredes da entrada da velha casa, apenas um lampejo do que fora um dia, da alegria que contivera, da admiração que inspirava dos visitantes do Doutor Bernardo. Zé Antônio não tentava se lembrar, e nem podia, dos maus momentos que passaram ele e a casa, as dívidas que o impediam de cuidar dela. Estava submerso numa bolha de sol como um castigo. Sentia seu corpo inflar e vazar pelos poros e orifícios. Pensava que como ele também estaria o corpo que lhe esperava no velório da cidade. Sentia-se mais próximo de seu tio morto que quando estava vivo. Aliás, nunca se entenderam, jamais foram amigos. Agora, na morte de um, o outro entendia pela primeira vez que eram essencialmente a mesma coisa, um bloco de carne e suor cada vez mais inflado e disforme, esperando o momento de irromper dentro da terra em algo que jamais conseguiram atingir sobre ela: coisas vivas em situação de paz.

Zé Antônio buscava sinais de sujeira nas manchas molhadas de sua camisa de linho branco, herança do pai, quando foi interrompido pelo som crescente do motor do Passat 92 de seu primo Jonas, que estacionava para lhe levar ao velório. Com esse calor, não se podia fazer honras a nenhum morto por mais de algumas horas. Num movimento longo, Zé pôs-se de pé, abriu a pesada porta de grade e mergulhou de vez no mar de calor que lhe parecia um inferno benevolente e justo. Julgava seu sentimento de desvanecer e dar lugar ao nada uma coisa apropriada e bem-vinda. Poucas palavras foram trocadas entre os primos. Jonas chegou a se mostrar preocupado com as despesas do funeral, Zé disse que depois se via disso e o primeiro segurou o choro. Sem trocar olhares, limitou-se a dizer que por conta do calor, poucas pessoas poderiam ver o tio antes que o enterrassem. Zé Antônio disse que eles poderiam visitar o túmulo depois e imediatamente se lembrou de como havia poucas árvores no cemitério que dessem alguma sombra. Em toda a pequena cidade do interior havia poucas árvores. Durante a tarde causticante, quase não se via mais gente, somente a ondulação do asfalto, a tinta molhada de uma pintura inacabada que queria inundar tudo. Zé não entendia mais porque vivia ali.

O corpo magro e duro do Zé, mais alto e cadavérico que o do primo, flutuava antes mesmo de deixar o carro. Poderia ter saído pela janela quase sem tocar em nada. Suas tintas e óleos se liquefaziam e seus membros já se misturavam com os tons de verde, marrom e cinza da rua, e com o azul-branco do céu e do horizonte descampado que tremeluzia. Sentia seu meio inchar, a cara se espalhar como uma bola de sorvete e mesmo ao cumprimentar os que estavam presentes no velório, não tinha certeza se podia emitir sons, sentia que sua própria voz se perdia no guache confuso de tudo ao redor. Será que notavam que ele já não se movia por passos de perna por já ser um borrão com dificuldade em se submeter à força da gravidade? Zé Antônio já perdera a segurança de que estava de fato sentado em uma cadeira, ao lado de duas figuras desbotadas que pareciam ser sua tia Solange e o seu bom amigo Plínio, com quem ainda tentou trocar algumas palavras de agradecimento por ter comparecido à humilde cerimônia, mas sem nenhum efeito aparente pois o rapaz nem sequer virou o olhar a ele. Parecia mesmo um caminho sem volta para o Zé. Liquefazia-se na fornalha daquela sala de velório e expandia sua matéria para além das definições da espécie humana.

Era necessário escolher o que fazer de sua última ação como pessoa antes de virar esse mingau viscoso de calor cósmico que já lhe engolfava por completo, dando-lhe a sensação de boiar no mar com os ouvidos dentro d’água e o sol na cara. Mesmo que não quisesse, ia se entregar de vez ao vazio, e nesse ponto usou todo o restante de sua concentração para imaginar duas pernas sobre sua água colorida em formato de ovo frito mole que outrora fora seu tórax, ergueu-se como pôde sobre essas ideias de membros e caminhou feito água-viva até o caixão. Viu um borrão como ele, enxergou as cores do calor por fora, as mais vermelhas fugindo , espalhando um laranjado que se continha naquele frasco de madeira. Ouviu o choro de sua tia, o roçar sofrido do abraço do primo e do amigo, algumas palavras sobre como era jovem, como tinha tanto para fazer na vida, que Deus o receba, ele sabe o que faz. A porta aberta deixou passar uma brisa curta, que mais fez o Zé Antônio se lembrar do calor insuportável que propriamente o combateu. Foi tomar um ar fresco lá fora e desapareceu para sempre.

No dia seguinte, não se falava de outra coisa na cidade. Encontraram na mesma tarde do velório, no dia anterior, o corpo do tio do Zé perto de um riacho, não longe de onde costumava ser o rancho da família, que acabou vendido. No jornal estendido na mão de um Plínio abatido, a manchete anunciava a tragédia: “Jovem mata tio e comete suicídio. Relação entre os dois era ruim há anos, segundo familiares”. O texto então informava: “O clima esquentou de vez quando o tio se recusou a entregar ao sobrinho uma parte do dinheiro da venda de um imóvel agrário. Segundo pessoas próximas da família, o dinheiro seria usado pelo jovem para quitar dívidas deixadas pelo seu pai, irmão da vítima, morto no ano passado em decorrência do alcoolismo”.

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Enredo para uma novela mexicana

1. Uma menina complicada.

Cuernavaca é uma cidade agradável. Há um centro agitado, uma praça por onde circula uma fauna diversa de gente e alguns grupos de Mariachi ensaiando em suas rodinhas ou enrubescendo namorados com belas rancheras. Aos finais de semana os arredores são tomados de gente indo aos diversos bares da região e também a uma certa rua que é um quarteirão de comprido e pouco mais que uma calçada de largura, por onde não passam carros. Naquele corredor afogado pela música pop latina em alto volume vinda de bares a poucos metros um do outro, combinação que atrai muitos jovens e poucos velhos, Ximena Maria já deu muitos beijos e muitas risadas, colecionou bons momentos de todos os tipos e alguns dramas de menina. Tudo isso agora colocado dentro de um baú à espera da chave.

Ximena não gosta de Cuernavaca. Ela apenas tolera viver ali e acha a maioria das coisas e pessoas muitíssimo chata e atrasada. Já vinha há alguns anos alimentando a vontade de sair do México, ainda mais depois que o rapaz de quem gostava fora estudar nos Estados Unidos. De coração partido e com o partido do seu pai perdendo as eleições, também o sonho dela de ir para longe acabou adiado por quatro anos na espera do novo pleito ou, em caso de nova derrota, que um tio que mora na capital lhe ajude com um bom dinheiro. Tinha só dezoito anos quando enfrentou os fatos e seus pais decidiram que ela podia esperar. Sua segunda opção seria estudar na cidade grande, mas sua família não conseguia entender por que ela não queria morar com o tio e por isso não a deixavam ir. Ela jamais diria que não gosta da forma que o tio a olha desde que era criança, que se enoja com a voz e o comportamento da esposa dele e que se sente perscrutada e diminuída pela filha deles, sua prima.

Agora aos vinte e um anos, Ximena está no segundo ano de Psicologia na faculdade local e o partido do seu pai não é um dos mais vistos nos muros e televisões de Morelos. Ela nunca faz mais que o necessário para ser aprovada nas disciplinas e passa a semana vendo TV em seu quarto, indo para bares a partir de quinta-feira e colecionando memórias novas de minissaias, em bancos de carros, quartos de motéis, saídas de dois dias na Cidade do México e férias na praia, na casa de veraneio de alguma amiga. Ao passo que perde suas expectativas em sair de sua cidade natal no futuro próximo, percebe-se também cada vez mais bonita e esperta. Sente-se renovada nesses dias em que tem conversado bastante com um mestrando inglês de 27 anos que faz uma pesquisa na região, o que os fez se conhecerem em uma festa e se verem outras vezes nos corredores da faculdade. O fato dele estar perto de voltar ao seu país pode ser uma coisa ruim ou boa, dependendo de como Ximena proceder. Afinal, ela pode muito bem ir com ele.

Além dos bons atributos físicos, David Grismly é culto e sensível às artes, se veste bem, é bem-humorado e faz amigos facilmente. Vem de uma família de posses, já esteve em outras partes do mundo e não fala o espanhol tão mal assim. Ximena se encanta com o sotaque atrapalhado do estudante confundindo palavras, repetindo os pedidos várias vezes ao garçom até que algum colega se incline ao resgate, quando ela mesma assume o salvamento, traduzindo sorridente o pedido de Mezcal e Michelada. David diz Gracias, com erre inglês acentuado. Ela diz “de nada”. Diretamente nos olhos dele.

Neste domingo David vai de carro alugado até a casa dela. Vai buscá-la para irem a Tepozteco, uma pirâmide pré-colombiana que se avista no topo de uma montanha ao lado do vilarejo de Tepoztlán, perto dali. Ximena Maria está ansiosa pela viagem, tanto pela oportunidade de se aproximar mais dele, quanto pelo medo de não conseguir esconder seu irremediável desinteresse pela História local. Como para encontrar ânimo e se munir de assuntos, conta sobre a viagem do dia seguinte à irmã mais nova, Clementina, que é apaixonada por esses temas. A garota jamais foi a essa pirâmide, apesar de ter lido a respeito muitas vezes e já ter visitado as ruínas de Teohuatiacán e Xochicalco com a escola. As duas irmãs foram juntas no ano passado ao Museu de Antropologia na capital, a única vez que Ximena dormiu na casa do tio já na maioridade. Na ocasião, o entusiasmo da irmã em falar sobre o mercado de Tenochtitlán, o estudo das estrelas pelos Mexicas e rituais de sacrifícios a ajudou a superar o pavor de dormir naquela casa e a fez sorrir algumas vezes, sem prestar muita atenção nem em Clementina, nem em seus próprios pensamentos.

Neste momento de ternura forjado pela lembrança da pureza da irmã mais nova, Ximena então a convida para ir com ela e David a Tepozteco. É um jeito de mostrar a parte que lhe agrada da família, encontrar situações engraçadas para se agarrar nos braços do estudante durante a subida e de fugir de maiores responsabilidades no debate cultural certamente esperado pelo mestrando, que, afinal, estava no México para estudar as ruínas locais. A princípio a menina fica em dúvidas, pergunta se não seria melhor se não fosse para que os dois ficassem a sós, mas a mãe delas, que sentia a tensão na casa e já sabia da história com o rapaz inglês, surge como um fantasma no quarto para reforçar o pedido de Ximena, não lhes dando o tempo de reavaliar a proposta. Agora está decidido. David vai levar as duas ao topo da pirâmide, por bem ou por mal da irmã mais velha.

2. Uma menina simples.

Clementina não gosta de acordar cedo, mas seu mau humor dura muito pouco. Lê Simone du Beauvoir, às vezes Borges, García Marquez e Neruda, vira umas páginas sentada ao sol e ignora umas três vezes o chamado da mãe para ir à mesa. Daí em diante se assume completamente brincalhona, mesmo ao reclamar do machismo mexicano e da fisiologia do poder público, que chama de revolução a manutenção do poder pela elite. Brinca com a contradição que é a existência de um partido chamado PRI, que é revolucionário e institucionalista ao mesmo tempo. Seu pai sorri. Ela derrete qualquer irritação materna com um sorriso que faz a mãe trocar de assunto e agarrar o rosto da menina, limpar ali alguma sujeirinha que só ela viu com um lenço e plantar-lhe uns beijinhos depois. Nesta manhã ela reluta em sair da cama, como de costume, e não tem tempo de ler nada justo no domingo, quando se permite saborear histórias de vampiros adolescentes apaixonados sem contar para ninguém. Agora ela tem que sair para acompanhar a irmã mais velha e o seu pretendente em excursão ao Tepozteco. Uma chatice, mas ela tem o hábito de transformar tudo numa grande aventura pela História do México, de sua cultura, seus mitos. Ela se anima de novo. Que país complexo!

Quando David chega, a porta da casa se abre sem que ele toque a campainha. Ximena está linda. Seus cabelos pretos e lisos caem um pouco abaixo dos ombros cobertos pela metade por uma blusa de seda preta que deixa um pouco da barriga à mostra. Com óculos escuros, batom vermelho sobre a boca esguia como o corpo e metida num jeans apertado, é uma visão e tanto. Clementina ainda não está pronta, então o rapaz é convidado para um café e se senta à mesa com o senhor Gonzáles, o pai. Este passa a falar da preguiça dos mexicanos, usando exemplos de grandes empresas inglesas que se instalaram no país para dizer que seus conterrâneos não têm ambição. Com a intenção de mudar as coisas, entrou na política e nada conseguiu. David olha com algum nervosismo para Ximena e, muito educado, chega a ensaiar umas duas vezes um convite para irem logo, até que Clementina surge falante na sala, seguida pela mãe.

Clementina é delicada, se move naturalmente sem hesitar sorrir ou tocar uma flor no caminho depois da pequena escada, notar um cheiro bom de café e vir se aproximando de David como a brisa, num único e longo deslize pelos ares que acaricia uma flor e leva esse cheiro gostoso de café. Em seu vestido azul-claro e com seus longos cabelos castanhos e tão ondulados como a brisa deve ser se pudéssemos vê-la, e ei-la, é deslumbrante.
Ximena faz as apresentações em espanhol, mas Clementina diz “nice to meet you, David, I’ve heard so much about you”, ao que sua irmã lhe pede para falar em espanhol porque David quer aprender. “Oh, I see, por cierto, perdón, ahora solo voy a hablar en español, te lo juro”.

3. Um rapaz apaixonado.

Na subida de uma hora, morro acima até a pirâmide, com pausa para dois descansos e ocasionais passagens a alguns grupos que fazem o caminho de volta, David constata o pior: está completamente atraído por Clementina. Ela oblitera a diferença de idade com uma doçura madura no olhar que consterna o estudante.
O topo da pirâmide põe mais coisas em perspectiva que o agradável povoado de Tepoztlán com suas casas agora reduzidas a formigas lá embaixo, num vale cercado por altas montanhas por todos os lados. David recusa de um jeito simpático o abraço de Ximena. Eles conversam, mas o rapaz agora esconde menos seu fascínio pela irmã mais nova e esta retribui os seus olhares para receber novos olhares. Ademais, ela acaba de dizer que está muito feliz por ter chegado lá em cima e ver o mundo meio do chão, meio do céu… Difícil é não abraçar uma menina assim.

De volta a Cuernavaca, eles chegam na casa das garotas. David desce do carro e diz hasta luego às duas, sem dose extra de carinho a Clementina. Os pais delas já vão fazendo perguntas sobre o passeio e convidam o jovem a entrar, mas ele diz ter pressa, precisa passar parte do projeto ao seu orientador até amanhã. Entra no carro, vai até a esquina e estaciona. Ele desce à calçada e fica ali parado um pouco, como quem espera um milagre. Eis então que Clementina surge portão afora e vem apressada em sua direção com o seu vestido azul-claro mexendo sobre as suas pernas trêmulas de menina apaixonada. Ele congela. Um beijo que parece ter sido previsto na profecia de algum povo pré-colombiano finalmente se realiza, tantos séculos depois, e cumpre-se no aperto de duas pessoas que entendem algo grandioso juntas pela primeira vez.

No dia seguinte, David vai com a melhor malha inglesa que encontra em sua mala tocar a campainha da casa. Atende Martina, a mãe. Ela convida David a entrar. Ele pede para falar com Clementina e quando ela chega, que seja a sós. Ali mesmo é feito e aceito o convite. Clementina vai com David na semana que vem para Londres, vão viver juntos e ela vai continuar os estudos lá. David sai. Os pais de Clementina dizem não à menina todas as vezes até que o rapaz reaparece no dia seguinte. Ali David expõe toda a seriedade de seus sentimentos ao casal, eles recusam tudo, mas prometem ponderar. Alguns telefonemas a parentes, a pressão incessante da garota e dois dias depois eles cedem. Ximena não é consultada.

4. Desdobramentos

Clementina vive em Londres com David há 2 anos. As coisas vão bem, mas David começa a ficar por períodos cada vez maiores fora de casa. Para ela, algumas das viagens de David passam a parecer evitáveis e até mesmo inexplicáveis. Ela recebe muitas visitas de mexicanos no apartamento, uma amiga do tempo de escola e outras pessoas que conhece por intermédio dela, entre elas alguns rapazes gays. David tenta não demonstrar a sua irritação com a vida social paralela da namorada, mas não se contém ao chegar em casa depois de passar uma semana no leste-europeu e encontrar um rapaz e duas garotas dormindo nos sofás e num colchão em sua sala. Ele os expulsa.

O casal se distancia aos poucos, mais um ano se passa e se aproxima a graduação de Clementina em Ciências Sociais. Ela se apaixona por Daniel Matias, um brasileiro que conhece num bar próximo à faculdade. Eles têm amigos em comum e passam a se ver com maior frequência. Começam a sair mais vezes juntos, às vezes a sós. Daniel está interessado, mas não em ter uma vida junto a ela. Ele vai ficar em Londres mais alguns anos, quem sabe ela não fica com ele mais um tempo na cidade? Mas o rapaz acaba por não inspirar a sua admiração. Ele se mostra fútil e machista. Ela não persegue o romance. Um tempo depois, desanimada, termina com David, que dá boas vindas à liberdade recém-conquistada. Ela volta ao México.

No avião, Clementina ao lado da saída de emergência finge que ouve as instruções para o caso de precisar. Ao seu lado há um casal mexicano, ambos aposentados, que voltam de visita a um filho que estuda na Inglaterra. Eles conversam trivialmente sobre a sorte que algumas pessoas têm de poderem se educar na Europa e as portas que isso abre. Ela sorri e diz que concorda, não está minimamente interessada em nada daquilo. Ela se distrai com um filme, lê um livro e agradece a escuridão da noite. Dentro da aeronave as pessoas dormem. Vendo as luzes das cidades mexicanas abaixo, ainda no escuro ela deseja que as turbinas explodam em dois grandes meteoros com caudas de fogo que cruzem o céu e caiam para destruir todas as ruínas lá embaixo. E que as chamas incontroláveis se espalhem pelo continente todo, toda a América, o Brasil, este mundo todo, que tudo se reduza a cinzas e que chova por anos e anos com enormes tormentas elétricas. E que o oceano fique negro de lama, cinzas, gases venenosos e que ela esteja lá embaixo com os últimos da nossa espécie, junto com as pessoas da América que choram pelos seus mortos, pelas suas próprias mortes iminentes, lamentam a vida que termina e a vida que tiveram, a maior parte do tempo presas em frágeis moldes de gesso que eram seus ideais, seus prazeres estúpidos, seu acúmulo indecente e seus medos mesquinhos.

Agora ela está prestes a reencontrar a irmã, com quem mal falou desde sua súbita saída do México. Ximena jamais saiu de lá. É feliz, um pouco frustrada, casou-se com um engenheiro local e tem um filho. Nenhuma delas sabe o que esperar ou o que dizer.

Começa a novela.

Episódio Piloto: O reencontro

Sequência 1: Uma garota complicada.

Cena 1 – Vista de um ponto de ônibus Cuernavaca – EXT – Dia.

Um ponto de ônibus. 4 pessoas esperam ali: um homem de mochila, jeans e camiseta gola polo, uma idosa com o olhar distante, um rapaz ouvindo música no fone de ouvido e Ximena aos 21 anos, que apesar de bonita parece um tanto desanimada.

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Sobriedade

Sai um cabisbaixo Hélio o mais cedo que pode, o sweater de lã azul e preto, a barba por fazer, as unhas por cortar, outra hora o faz, é sua natureza ser um tipo liso, quase invisível. Ainda mais no frio, se esquecera de como era. No domingo só choveu. Todo pássaro é um sobrevivente, mais que nós, isso é certo. Fica nas árvores como? De que jeito ainda voa? É que é oleoso, bicho que escorrega. A água nele resvala, ele próprio é essa chuva, que só foge, que desliza, vai aos toques, em cadência, perpassa, atravessa, está e não está, lambe mas não abraça. E como choveu em Ubatuba no domingo. É mesmo como dizem, Uba-chuva, o dia todo. Uba significa lugar. Tuba é fruta. Amana é chuva. Amanaúba, então. E sem problema nenhum, até de bom grado, como tudo seria estando ali com ela. Mas no sábado fez algum sol. E havia muitos pássaros, muitos pios, uma felicidade.

São nove e meia e chove aqui também. Olha a banca. No Brasil tem um político evangélico que é presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Olha o que dá tirar férias, pensa e ri sozinho, mas há uma senhora em sua frente e ele escoa-se adiante nessa segunda-feira que a moça já partiu. Foi de volta à Argentina, de onde veio transferida por três meses pela editora. Hélio é revisor de textos. Pensou nos custos, na hospedagem, fez inúmeros planos em noites em claro diante da pilha digital de obras ponto doc na tela. Por ela. Que já se foi, deixando dois rombos. Ele é freelancer, só se complica, ouve muito Chet Baker, bebe muito e se apaixona assim, pelas carinhosas, as que lhe afagam e nele afagam-se. Assim não vira ilha, não fica incólume do mundo, não trabalha para si, nem mantém-se à deriva. As ilhas não estão assim à deriva, ele sabe, não quer saber. Vai revisar textos freelancer até quando? Vai ser mestre quando? Vai ser mestre? O patrão é doutor. Isso é bom, será? Viria a ser?

Na República, mendigos. E a conversa ao redor é de trabalho. Vai revisar algo sobre a origens do trabalho assalariado no Brasil de um pesquisador novato, e já tem as provas em casa, ponto doc. Se não estivesse atrasado não estaria tão molhado, mas não teve tempo para comprar outro guarda-chuva. Perdeu o antigo numa quarta e foi à praia na quinta. Com ela. E ela foi embora duas semanas depois. Mas como choveu, ainda bem, assim não saíram tanto. Chega no metrô e se apruma, espera, se conseguir um bom espaço vai ler mais da História do Cerco de Lisboa do Saramago no trajeto. E parar. Mais de uma vez. Para pensar na volta para casa. Vai descer a noite na estação São Bento, achar um boteco, pedir uma Boazinha, sair tomando uma lata e atravessar todo o vale do Anhangabaú, onde quem sabe terá uma banda punk, uma manifestação ou qualquer algazarra feita por quem quer dizer um merecido não. Não à saudade. Não ao inevitável sentimento de perda, tanto ciúme de algo que jamais foi seu nem nunca será. Não ao lamento. Não à gaiola. Que sobriedade é dizer não às coisas, como a reconhecer-se como vítima de assuntos internos e externos do meu Brasil.

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Vou-me embora da Mourávia

E o teu Palmeiras, hein, porco gosta da lama? Porra, mas tem que começar logo por esse assunto? Eram dois amigos no bar onde já não iam havia uns quatro anos. O lugar estava caído, mas aberto, o que já era mais que motivo para o bom humor.

Esposas em casa, dinheiro no bolso, tempo sobrando, e o papo flui por entre os causos do Daniel, o palmeirense, sobre um conhecido que se enroscou na mulher de um capitão que ficava fora durante a semana. Falou também de um amigo mútuo que estava com a vida atribulada, mas a este voltaremos depois porque no começo o Fabiano ainda falava do emprego novo, do alívio ao conseguir a vaga, do plano de carreira que a empresa oferecia, tudo muito merecido e direito, Daniel aprovava, mas logo deu a trocar de assunto para as coisas mais quentes no menu das reminiscências do dia, como suas próprias escapadas sexuais. Uma novinha ali, uma coroa acolá, e logo-logo, porque no Brasil a gente repete palavras, estavam os trilhos apontados em direção a Moura, que é o rapaz cuja vida atribulava-se. Eles embarcaram.

O Moura está bem? O Moura já esteve bem? Riam. Mas o que foi desta vez? Cerveja na mesa, a dose de uma boa cachaça mineira amarela tida como “daquelas chique”, o dono do boteco ainda estava lá, menos ágil que antes, e deu a beber da própria mercadoria e jogar RPG online no computador. Fora os quatro, mais duas garotas de cujos dotes basta dizer que o Daniel riu pelo nariz, soltando ar em golfadas, quando as viu depois que Fabiano sugeriu que “qualquer coisa mais tarde, ó”, já que claramente não tinha jeito. O Moura, finalmente, está na merda, deve ao banco quantia grande e não se ajuda, vive de bicos, mora quase de favor, vive em outro mundo, a Mouralândia, dentro das Mouralhas da China, a Mourávia, Mouringrad.

O Moura está para ficar mais pobre ainda, que uma garota vem aí da Europa para ficar com ele um mês, e ele vai ter que alugar quarto de hotel. Com o nome sujo, o cartão de crédito bloqueado, vai fazer isso como? Dá-se um jeito, principalmente se ela for bonita. Parece que é, sim. Ela vai fazer o quê lá? A Mourávia tem uma população de um homem apenas, média de idade de 28 anos e está atualmente atravessando uma grave crise financeira, passa por medidas de austeridade econômica e seu povo vive flutuando entre uma utopia política e a plena desesperança. Isso torna o habitante a ficar menos amigável com estrangeiros, o que faz da Mourávia atual um destino de uns poucos turistas intrépidos, como uma garota bonita que vive na Europa e que vai deus saber o que viu naquela terra de bêbado, que todos sabem que a Mourávia faz divisa com a Boemia e essas partes sempre fizeram muito comércio e não exigem nenhum visto uma da outra.

Quem é que vai resgatar? E o que é que eu posso fazer? Cada um sabe de si, minhas relações serão sempre cordiais com aquele povo. Vamos ver quanto a turista dura lá? Quer apostar? E riam. Ficaram uns tempos em silêncio e outros conversando trivialidades. Olha a hora, cara, vamos terminar essa e pedir a saideira? Vamos, vamos. Mas é, todo mundo tem seus problemas, não é, cara? É, é sim. Amanhã vou ligar para ele, ver se eu posso ajudar em alguma coisa. E depois os dois foram para suas casas. O dia seguinte era segunda-feira e eles se sentiam estranhos.

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Waldir, o Professor de Química Orgânica

O carbono é o material da vida. É o átomo presente em tudo que vive, em tudo que pega fogo e tudo que é comido e despejado em matos, potes, penicos, latrinas, privadas e, mais recentemente, em privadas de estações espaciais. O combustível de carros, aviões, ônibus e caminhada, é carbono. Gasolina e carboidrato são carbono. O diamante também, assim como a madeira do barraco, as unhas e o cabelo. Aliás, percebe-se que as ligações de carbono são arranjadas e rearranjadas de acordo com o poder de compra do indivíduo, com exceção das unhas.

Tal constatação nunca fez parte do plano de aula de Waldir Cunha, Professor de Química Orgânica que de tão careca de saber de química, os carbonos deixaram de crescer
em sua cabeça. Numa terça-feira, Waldir cumpria o trajeto usual à escola onde lecionava aos filhos da classe média (que naquele tempo era menor que hoje), e pensava em
visitar um velho amigo de faculdade que agora faz implantes capilares. Olhava-se no espelho retrovisor enquanto esperava o troco no pedágio entre a cidade onde mora e
aquela onde fica a escola. A borracha é carbono, o asfalto também.

Na escola, Waldir sempre foi muito respeitado por ser um professor eficiente. Química orgânica era disciplina fácil quando lecionada por ele. A maior dificuldade de
seus alunos era mesmo o medo. Medo do Waldir, que não media esforços em expor seus alunos ao ridículo. Inventava apelidos, identificava publicamente quem sabia mais e
quem sabia menos, estabelecia com a convicção de quem já viu muita coisa na vida que o Zézinho não ia dar em nada, enquanto o Marquinhos tinha um futuro brilhante.
Com risos nervosos, seus alunos quietos não ousavam expor seus frágeis pêlos ao fogo do professor. Queimar-se ali poderia ser uma daquelas experiências que marcam o tempo, podendo ser adivinhadas por psiquiatras-arqueólogos através de datação de carbono. “Ao que tudo indica esse trauma data do comecinho dos anos dois mil”.

Waldir adorava ensinar naquela escola. Ali, ele se sentia apreciado e ouvido. Dizia qualquer coisa e todos riam, uns se escondiam, e naquela terça-feira começou a aula de um jeito diferente. Tinha em mãos um jornal, feito de carbono. Leu a manchete em voz alta: “Pesquisas apontam vitória de Lula no segundo turno”. Não poupou adjetivos aos elementos da cadeia molecular: “povo burro”, “vão eleger um socialista ignorante”, “ele não tem estudo, mal sabe falar”, “e eu sei que tem gente aqui nessa sala que se chama de socialista, agora eu quero ver quando esse cara ganhar e dividir o fruto do trabalho do seu pai com os pobres”, “quero ver se vocês vão gostar”. Havia dois alunos que gostavam mesmo do socialismo, ainda que não fossem militantes de nada senão o Rock n’ Roll e a busca por sexo. Se há duas coisas difíceis para um colegial do interior paulista é fazer sexo e ser militante de esquerda.

Ouviam o discurso raivoso os dois alunos em questão, Bruno e Fábio. Se entreolhavam em mútua percepção de que eram eles os carbonos marginais daquela molécula etérea e vencedora que estava naquela sala. Por culpa desses dois carbonos, a estrutura toda ia ter que usar seus elétrons para se ligar à corja de vagabundos que vão mamar nas tetas da classe média se esse socialista for eleito. “É isso que vocês querem? Trabalhar a vida inteira sustentando vagabundo que só quer saber de roubar e ouvir pagode?” A classe toda riu. Até o Fábio, que odiava pagode como todo rapaz de dezesseis anos que toca bateria numa banda de Heavy Metal. Mas foi um sorriso curto e voltou a olhar para o Bruno. Este não via graça em nada daquilo. Resolveu ignorar a súplica no olhar do amigo e decretou: “pois é, Professor, é por isso que o senhor leciona Química e não História. Se nós vivermos de acordo com esse princípio de que devemos ter medo de perder essa condição pequeno-burguesa hereditária continuando a manter milhões na miséria, então já somos perdedores. Que nem o senhor, que acabou de perder desse humilde átomo qualquer respeito”.

Um átomo de carbono faz quatro ligações. Uma delas foi para os pais de Bruno, que o repreenderam severamente. Como punição, foi impedido de ir à Porto Seguro na semana
do saco cheio. Para um colegial, isso é absolutamente terrível. O próprio Waldir foi e assediou uma aluna menor de idade que estava bêbada no hotel.
Álcool é carbono. Waldir foi demitido na semana seguinte e só faltava um mês para o fim das aulas. Para a surpresa de Bruno, os alunos fizeram um pequeno protesto e foram à diretoria defender Waldir. “Os vestibulares estão chegando, que irresponsabilidade tirar o técnico do time tão perto do final do jogo. A menina estava bêbada e sempre foi lasciva, todo mundo sabe”.

Bruno voltava de suspensão. Não tinha ido à viagem. Não tinha escolha senão ouvir todas as histórias das quais não participou. Não podia argumentar em favor da diretoria, pois esta o havia suspendido pouco antes de demitir o professor. Ele não passou nos vestibulares. Ele não é um vencedor.

Ontem, o Bruno foi encontrar um amigo em uma faculdade no interior. Faculdade particular, como a que ele mesmo cursou, já que os vestibulares para a pública são concorridos e ele havia desistido de lutar. O amigo cursava Química e ao perceber que era o Waldir o professor que estava na sala, Bruno pegou carona atrás de um aluno atrasado e se sentou bem no fundo (como nos tempos de colegial), ouvindo a aula.

Em dado momento, Waldir contou um história. Disse que em uma faculdade norte-americana, um professor de economia havia decidido que todos os alunos receberiam suas
notas de acordo com a média da sala. Isso era para demonstrar praticamente o funcionamento de uma sociedade socialista. O resultado teria sido a desistência dos mais
inteligentes, que não queriam carregar os fracos nas costas. E pela primeira vez, aquele professor se viu obrigado a reprovar uma turma inteira. Ninguém viu nada de estranho na história. Uma aluna a classificou como uma boa reflexão, enquanto alguns outros ensaiaram uma salva de palmas. Bruno saiu sem ser visto nem por Waldir, nem por seu amigo. Mandou uma mensagem de celular dizendo estar indisposto e foi para um bar sozinho, qualquer bar que servisse carbono líquido.

Bruno é professor de História do atual Ensino Médio. Em suas aulas, sente que faz o possível para ajudar seus alunos a entenderem que nada é sozinho, que a física e a
filosofia não precisam se distinguir tanto a ponto de não se notarem as suas ligações. Ele não é popular entre os vestibulandos, principalmente quando defende as cotas sociais e raciais ou o bolsa-família. Fora de aula ele fala pouco. E vive só.

Já Waldir estudou na USP. Semana que vem, o Professor de Química vai ao encontro anual de sua antiga turma de faculdade. Ele, sim, é um vencedor.

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Pergunta recorrente sobre as cotas raciais

Devo confessar que foi por um tempo difícil para mim compreender exatamente o raciocínio por trás das cotas raciais. Já pensei que não havia explicação decente para o “raciais”, e não “pobres”, por exemplo. Suspeitei de campanha de marketing por votos, critiquei a política do imediatismo ou do ‘tapar o sol com a peneira’, que desistia do problema principal, o Ensino Fundamental e Médio público. Mas nada realmente se encaixava. Grupos ativistas manifestavam-se a favor e eu me cutucava com a questão racial.

O ensino público de base é obviamente uma área imensamente complexa que não muda do dia para a noite. Ficava claro que não dava para esperar tanto (gerações) até que todos pudessem realmente ter as mesmas chances vindo de seja lá qual situação financeira neste país. É necessário garantir um acesso mais democrático ao Ensino Superior àqueles que tem tantos direitos negados por serem pobres. Ser pobre não poderia jamais justificar a falta de acesso à educação e tudo o que for público, em boas condições. Era pra hoje! Pra ontem!

Mas por que especificar os negros os índios? E eis a pergunta que é, para mim, a mais recorrente sobre as cotas raciais, que foi-me feita de forma quase idêntica por uma pessoa querida, que é contra:

“As cotas raciais não trazem, dentro de si mesmas, elementos racistas?”

Segue a minha resposta, que tomo por satisfatória e conclusiva para a minha posição a favor, agora firme:

Sim, traz traços racistas. Isso porque reconhece que há e sempre houve racismo. E ele gerou uma enorme população negra e indígena pobre e sem acesso aos seus direitos, porque direito era coisa de gente superior, afinal… Ou seja, é diferente de cotas para ‘pobres’ porque essas pessoas foram metodicamente expulsas da sociedade por serem ‘negras’, e não por nenhum outro motivo. Uma população de cultura reconhece a sua história e os delitos de seu passado vergonhoso e toma providências, no presente, para garantir alguma reparação, através da garantia de acesso ao ensino superior não a quem tem menos capacidade, claro, mas sim a quem teve até ontem parentes analfabetos e pobres inseridos numa cultura de subemprego e servidão e teve, por consequência, muito menos chance de estudar, muito mais necessidade de trabalhar. Por culpa de sua própria sociedade racista. Para os pobres em geral existe o Prouni, que já funciona.

Não presumo ter o poder de mudar opiniões, mesmo das pessoas mais queridas, mas só contribuir um pouquinho para o surgimento de uma coceirinha que indique que talvez, só talvez, seja a própria herança do racismo que torna difícil aceitar uma decisão tão delicada, tão necessariamente negra e tão justa quanto essa.

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